segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

"Anarquistas: graças a Zélia!"


Em férias, desde o final de dezembro: quase que conseguindo consolidar o ideal “caetanístico” de desfrutar “todos os ócios... todos os búzios”; voltando da praia (ou melhor, do desfrute dos “búzios”) com Claudinha – a minha melhor companhia para “ócios, búzios” e demais aventuras do cotidiano – assim como num estalo, entrei no shopping Guararapes e fui à livraria comprar “Anarquistas, graças a Deus”, de Zélia Gattai (Companhia das Letras, Ed. 2009, 323p).

Ler “Anarquistas...” era um projeto antigo; sempre adiado pelas leituras urgentes: acadêmicas ou políticas. O título me despertava a curiosidade... mas, Zélia, até agora, tinha sempre sido preterida... às vezes até em função do marido: lembro que “Anarquistas...” foi trocado, uma vez, na hora da compra, por “Capitães da Areia”; a crítica social venceu às memórias da infância, no último e decisivo minuto... no caixa, devido à “escassez dos recursos”.

No dia 07 de janeiro, entretanto, a espera acabou. Como dizia, passando com Cláudia nas imediações do Shopping Guararapes, sem mais nem menos, decidi que precisava ler um livro nas férias. Entramos no shopping, fui direto á livraria e, como não deveríamos nos demorar naquela empreitada, fui pedindo logo o livro de Zélia Gattai. Talvez se ficasse zanzando pelas prateleiras, ele tivesse novamente sido preterido... mas, dessa vez, finalmente, saí da livraria com a sensação de saciar essa curiosidade específica.

Ao percorrer suas páginas, entendi como foi providencial ter adiado por tanto tempo a leitura de “Anarquistas...” São muitos os pontos que me levaram a esta conclusão: a(s) história(s) se passa(m), quase todas, nos arredores da Consolação – bairro de São Paulo que, ano passado, tive o grande prazer de conhecer, me hospedar, e fruir por suas ruas... – daí, quando Zélia fala da rua Augusta, por exemplo, essa me surge nos sentidos com cores, nomes, contornos, aclives, rostos e cheiros... ; não só li, mas, estudei quase toda a bibliografia citada por Zélia como integrante da biblioteca anarquista de seus pais: Proudhon, Bakunin, Vitor Hugo, Émile Zola, Kropotkin... não são “simples” referencias literárias para mim...; já sabia da “Colônia Cecília” antes (e além) das linhas de Zélia, por isso, a história da imigração de seu avô ganhou mais volume do que ela mesma sugere...

Zélia, como se sabe, escreveu em 1979 essa obra que, para o Brasil, é uma das pioneiras no estilo que veio a se consagrar nos anos 1990 como “história da vida privada”. Contando a história de sua família ela descreve importantes aspectos da imigração italiana para o Brasil, da industrialização de São Paulo, etc. Mas, sobre isso, como me referi acima, já se sabe...

O que me sensibilizou na leitura de “Anarquistas, graças a Deus”, entretanto, foi que Zélia Gattai conseguiu “humanizar” os anarquistas. Trazendo-os para a sua casa, lhes deu formas, cores, sabores, angústias, alegrias, tristezas, forças, fraquezas... “alma”. Zélia Gattai desmistifica o estereótipo convencional dos anarquistas quando os apresenta cantando, amando, trabalhando, comendo, chorando... e, ao fazer isso, cumpre um gigantesco papel para o legado desses sempre incompreendidos atores sociais.

Num dos preciosíssimos capítulos ela descreve a surpresa do namorado da sua irmã em, ao acompanhá-la, junto com a família, às reuniões nas “Classes Laboriosas”, não encontrar lá terroristas, mas, ao contrário, pacifistas!

Sempre somos levados a acreditar que anarquistas são criminosos... quando, entretanto, conhecemos seus escritos, cremos que são gigantes! Zélia nos mostra que são HUMANOS... Que, nem sempre, é preciso martirizar-se para ser anarquista; que é possível ser anarquista na vida privada... no cotidiano... na educação dos filhos e na relação com os vizinhos e amigos – PRINCIPALMENTE, na educação dos filhos e na relação com os vizinhos e amigos...

Sem teorizar uma linha, Zélia – graças a Deus! – nos presenteou com uma importantíssima obra anarquista que, entre outras coisas, estabelece uma indefectível conexão entre o herói martirizado com a bandeira preta em punho e o homem comum, que se ocupa em garantir o sustento de seus filhos; entre o teórico da liberdade radical e o pai, preocupado com a reputação das filhas...

Ao completar a leitura de suas páginas, passei a compreender o título da obra não como uma ironia, como antes entendia que fosse, mas, como uma catarse. De forma inteligente, Zélia Gattai, atéia “de pai e mãe”, não está zombando de qualquer contradição político-religiosa dos anarquistas com os quais conviveu; antes, está se valendo de uma expressão consagrada do vocabulário coloquial brasileiro para agradecer a ventura de ter nascido e crescido numa família de anarquistas.

“Anarquistas, ainda bem”, “Anarquista, ‘yes’”, ou “Anarquistas, graças a Deus”; de um jeito, ou de outro, ou de outro, a contribuição de Zélia Gattai para a história do anarquismo e dos anarquistas é impagável.