sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012


Não se pode prender um raio de sol

Um conto de Breno Rocha
(escrito durante o carnaval de 2012)

Capítulo I
Insone Felicidade

Naquele dia ele acordou ainda de madrugada. O sol estava tímido... ou preguiçoso. Seus raios ainda não infestavam a terra de vida e de verdade. O quarto era permeado pelo luscofusco do quase amanhecer... Não sonhara, nem teve pesadelo; então, por que acordara antes do despertador?
O que sentia, e que o havia despertado, era a falta: sentia sua falta! Era como se ela nunca mais voltasse a estar ali, no seu quarto... na sua cama... Mesmo que, de fato, ela nunca esteve ali...
Então, perguntava-se: como posso sentir sua falta? É possível sentir a falta do que nunca se teve? É como se fosse possível sentir saudades do futuro... É pior! É como se fosse possível sentir saudades de um futuro extremamente improvável... Como sentir saudades de passeios pela gravidade da lua...
Sua saudade era, então, saudade do desejo (que lhe consumia) – ele concluiu enquanto abria o chuveiro na expectativa de que a água fria afastasse de suas narinas o seu cheiro doce... Indiferente a toda aquela água e espuma, ela insiste em permanecer consigo. Isto é, em permanecer sem nunca estar... como um espectro! (que desafia, inclusive, a lógica gramatical).
A felicidade é, portanto, um espectro que nunca se materializa, exceto na condição de desejo - filosofa ele, enquanto sorve a perfumada xícara de café.
Resignado, ele desce as escadas e sai. Nem olha para trás... nem precisa: ele sente que ela também vem... o acompanha... e o acompanhará o resto do dia; talvez até, o resto da vida... convertendo-se em sua felicidade, materializada na forma (espectral) de desejo.

  Capítulo II
A festa da latifundiária do tempo

... E, finalmente, ela despertou! Não se pode dizer que está atrasada, pois o tempo ainda lhe pertence. Assim é o tempo: uma dessas coisas que, quanto mais nós temos, muito mais é nossa! Sendo o inverso dramaticamente proporcional; isto é, no que se refere ao tempo, quanto menos o temos, mais nos deixamos por ele escravizar.
                Do ponto de vista do tempo, ela ainda é plenamente livre. Do cume de sua juventude, olha para o horizonte e diz – sobre o tempo que vê pela frente – com a arrogância dos latifundiários que contemplam suas posses: “até onde vejo; é tudo meu!”.
                Pessoas assim, latifundiários do tempo, nunca podem estar, de fato, atrasadas, pois, não obstante o prisma do qual se observe, estão sempre “acabando de chegar”. É por esta razão que, apesar do sol já encontrar-se abundando de vida e de verdade todas as coisas, com seus raios comichantemente dourados, não se pode dizer que ela acordava atrasada. Pode-se dizer, entretanto, que ela acordava em festa!
                Seu corpo delgado e sinuoso serpenteava, escorrendo da cama. Um salto de bailarina e o chuveiro aplaudia, em cascata controlada, sua performance matinal. Seu cheiro doce infestava o dia. Escolhia a roupa como quem apostava na roleta... e todos os dias eram seu dia de sorte...
                Assim, como se saísse de um musical americano, corria para o trabalho – corria, desculpem-me mas preciso insistir nisto que é muito importante, não por estar atrasada, mas porque é peculiar aos que não tem motivos para ter pressa, correr por pura diversão.
                Um ônibus, o trem, outro ônibus... e ela, ora escorregava, ora saltitava, ora se balançava; brincando com os obstáculos como fizera, há pouco, no playground da escola. A felicidade, para ela, era um conceito concretamente abstrato: não sabia, ainda, descrevê-la; mas, praticava-a plena e constantemente...

Capítulo III
Quando a aurora encontra o entardecer...

                Aquele era o dia 11 de junho, data que os antigos romanos dedicavam à Fortuna, deusa, filha de Júpiter, que, uma vez estando vendada, distribuí boa e má sorte, aleatoriamente, entre os humanos.

                Marcelo se via no meio de um enorme engarrafamento – evento que, de tanto se repetir no Recife, já não podia ser atribuído à deusa romana. Já havia mais de meia hora que os carros sequer conseguiam se mover. Na sua impaciência, tentara de tudo, buscando uma maneira de tornar produtiva aquela estática. O pior: deveria encaminhar aquela importantíssima planilha para a sede da empresa, na capital federal, e ontem o sistema... – Sempre o sistema! Repetia ele quase que em forma de uma oração – o sistema caiu, impedindo que ele finalizasse o lançamento dos dados. Telefonou para sua assistente: ela também estava presa na imobilidade do transito recifense. Ligou para Brasília, tentando justificar o inevitável atraso, mas o horário de verão impedia sua comunicação, uma vez que o expediente em Brasília ainda não havia iniciado. Resignado – e resignar-se parecia ser sua característica mais marcante – ligou o rádio, na esperança de que ouvisse alguma boa notícia sobre o trânsito caótico.
                Sentada na cadeira da janela do ônibus que estava parado no engarrafamento exatamente atrás do carro de Marcelo, encontrava-se Roberta, que ria, divertindo-se com aquela situação; afinal, TODOS, e não apenas ela, chegariam tarde ao trabalho.
                Não é exatamente assim que age a Fortuna? A sorte de uns, o azar de outros...
                Roberta, como dissemos, divertia-se: zombava da impaciência dos outros – de dentro e de fora do ônibus – enquanto ouvia a música que lhe chegava aos ouvidos através dos headfones conectados ao celular... Até que a Fortuna agiu mais uma vez: a bateria do telefone de Roberta acabou! Sem a música, como trilha sonora para aquele bizarro evento de caras feias, impaciência, mau-humor, buzinas e palavrões ao telefone, aquilo começava a ficar entediante. Ela, então, resolveu agir para solucionar o problema. Enquanto se levantava e caminhava em direção à porta do ônibus, pensava e voltava a sorrir: “Se fosse a mulher maravilha, eu punha fim a este engarrafamento e resolvia o problema de todo mundo. Mas, como não sou, vou atrás de carregar o telefone e resolvo o meu!
                Roberta desceu do ônibus e caminhou indefectívelmente até o carro de Marcelo, bateu na janela, o que lhe fez baixar o vidro e ouvir: “Posso carregar meu celular no teu carro?”
                Roberta é assim: informal. Sua franqueza faz com que trate as pessoas de maneira direta... quase intima. Ela, quase sempre, usa a segunda pessoa do singular para todos... quase sempre, a não ser que a ocasião (ou a pessoa) exija uma, para ela, constrangedora formalidade.
                Marcelo, abduzido da sua expectativa por boas notícias sobre o trânsito no rádio, ouviu a pergunta de Roberta como se fosse uma voz de comando: abriu a porta do carro e ela, conforme nos informa nossa lembrança, serpenteou seu corpo delgado, escorregando para o banco do passageiro...
                Eu sou Roberta! O trânsito do Recife tá uma merda, tu não concordas? Eu vou carregar minha bateria e o carro nem se move, queres apostar? Onde está o teu carregador?
                Para Marcelo, outra voz de comando.
                Em atendimento, ele abriu o portaluvas, pegou o carregador e entregou a Roberta.
                Tu não falas muito, não é? Como é teu nome? Tu vais até onde? Porque, dependendo, eu nem volto para o ônibus... Vou de carona contigo.

Capítulo IV
“Here comes the Sun...”

                Marcelo era executivo e como tal sabia reconhecer uma boa oportunidade. Olhando Roberta valsar dentro do carro, ali... bem na sua frente, escutava materializarem-se os versos daquela canção: “pra renovar meu ser, faltava mesmo chegar você...”
                A aurora não pode reconhecer o entardecer, pois nunca o viu; nem se dá conta de sua existência... não entende que aquele, uma vez que é seu antípoda, lhe completa. A recíproca, entretanto, é quase que instantaneamente reversa: visto que já fora aurora, o entardecer a reconhece saudosamente...
                Marcelo reconhecera a aurora em Roberta e entendera, quase que instantaneamente, que ela possuía, em essência, o que ele perdera ao longo das frustrações da vida. Ela era um raio de sol perturbando aquele luscofusco no qual sua vida houvera se transformado. Era Apolo, espalhando verdade na rotina de hipocrisias que lhe cercava... “here comes the sun...” (“agora ficou fácil, todo mundo compreende aquele toque Beatles...”).
                Proativo, Marcelo engoliu seco e retornou às perguntas de Roberta, com a voz macia e amistosa:
                - Roberta! Isto é alguma pegadinha, ou coisa do gênero? Tirei eu a sorte grande? Quantas são as chances de se ter o carro invadido por Vênus? Fique à vontade, deusa grecorromana! Tenho esperado a vida toda para servir-te...
                - Vênus!? Você não quer dizer Medusa? – brincou Roberta, escorregando, dessa vez das gentilezas de Marcelo, enquanto procurava no retrovisor um novo alinho para seus cabelos.
                Marcelo sorria: estava de fato feliz. A presença de Roberta lhe provocava felicidade. Ele se sentia como se a conhecesse a vida inteira – e isto não passava da sensação provocada pelo seu próprio reencontro com a aurora –, por esta razão, sentia-se muito à vontade na sua presença. Por isto, também, não se fez de rogado com o desconversar de Roberta:

                - Pronto! Eu não disse?! É mesmo uma deusa olímpica. O que mais explicaria que uma mocinha tão jovem conhecesse sobre mitologia?
                - A leitura? Respondia Roberta com uma sinceridade tão direta, que até poderia ser confundida com ironia.
                Roberta era, realmente, uma “mocinha tão jovem”. Por esta razão, tal expressão não lhe causava, ainda, o efeito elogioso esperado por Marcelo. Ambos viviam, naquele início de conversa, a consequência provocada pela diferença de gerações que se manifesta num certo descompasso na comunicação, provocado por um tipo de desconexão entre sentidos e contextos... A próxima tentativa de diálogo, demonstrará o problema com maior exatidão:
                - ...bem – continuou Marcelo sentindo-se sem graça, mas, ainda sem sinais de que desistiria – respondendo à sua outra pergunta: agora tenho certeza de que estou indo rumo à felicidade! Mas, só chego lá se você realmente não voltar para o ônibus, e continuar comigo...
                - Você é estranho... Comentou Roberta, agora um pouco constrangida.

Capítulo V
Veritas Lucet Ominia
(A verdade ilumina todas as coisas)

                Marcelo começava a entender o insucesso de suas investidas. Todo aquele floreio, todo aquele rodeio... aquela não era, efetivamente, a linguagem adequada para a situação. Suas tentativas de galanteio estavam, de fato, aborrecendo Roberta. De outro modo, ele não sabia ao certo como agir. Encontrara em Roberta a verve que reorientava o sentido de sua vida. Marcelo sempre acreditara em amor à primeira vista. Na verdade, sempre apaixonava-se à primeira vista... às vezes duas, três vezes por dia... Mas, essas eram paixões “de verão”: uma daquelas brisas que trazem frescura às tardes quentes e que, por isso mesmo, arrebatam-nos instantaneamente, confortavelmente. Tais brisas, no entanto, têm a efemeridade típica dos prazeres fugazes.
               Com Roberta, entretanto, ele sabia ser diferente. Ela não era uma brisa; era um tufão! Roberta remetera a preocupante planilha para a obscuridade do esquecimento; transformara o engarrafamento num evento agradável... não, num evento DESEJÁVEL! Ela tinha a capacidade de encher de si qualquer ambiente; e um ambiente repleto de Roberta era, sempre e sempre, um ambiente aprazível...
            Convicto de que não poderia perder mais tempo, Marcelo resolveu investir com a mais eficaz das estratégias, quando se trata das relações humanas: a verdade!

                - Roberta, disse ele, desculpe-me esse comportamento que você julga estranho. Mas, veja; você chegou e invadiu meu carro atrás de carga para sua bateria... assim que a vi, perdi o controle sobre minhas palavras, sobre minha vontade... eu tenho acordado lembrando de você, só que não a conhecia. Eu lembrava e tinha saudades de alguém que nem conhecia... eu sei que isto parece estranho, mas, há normalidade no amor? Não é o amor, por essência, estranho? Como definir um sentir tão sentido que nos faz esquecer-se de nós mesmos, em função do outro? Algo que nos faz gostar de alguém mais do que de nós mesmos é, indiscutivelmente estranho!
                Mas, entenda – continuava Marcelo – um dia a gente acorda, sai de casa e encontra aquela pessoa com a qual a gente sabe que passaria a eternidade junto. A “cara metade” de que nos fala a mitologia grega. A outra parte de nós, apartada à espada, pelos deuses, como castigo para as imperfeições de nossa condição humana, condenando-nos à infelicidade da busca. E por mais que procuremos essa outra metade, ela apenas pode ser encontrada assim: ao acaso, sob os auspícios da Fortuna. A Fortuna, querida Vênus, apenas a Fortuna pode ter disposto meu carro em frente ao teu ônibus e esgotado tua bateria exatamente quando da paralisia deste engarrafamento infernal.
                Olhe bem para mim – Marcelo, parece, resolvera não parar de falar – Olhe dentro dos meus olhos e me diga se não reconhece, no fundo da minha alma, seu porto seguro? Diga se não percebe o aconchego e a ternura do meu amor? Não se sente tranqüila? Não se sente atraída pela chama que me consome e que se faz perceptível na minha angustia; que você batizou de estranheza? E não concorda que tudo isso acontecer assim, ocasionalmente, involuntariamente, acidentalmente é, também, um sinal dos deuses? Uma dica olímpica de que devemos dar uma chance ao acaso?
                Agora, Roberta – Marcelo parecia que iria, enfim, encerrar seu monólogo –, agora você entende minha estranheza? Reflita um pouco e me responda: você quer ou não dar uma chance à Fortuna? Quer ou não seguir comigo rumo à felicidade?


Capítulo VI
Não se pode prender um raio de sol

            O discurso de Marcelo apresentava, efetivamente, nexo causal; tanto que se se tratasse de um tribunal do júri haveria grandes possibilidades dele ser inocentado da acusação de comportar-se de forma estranha.
            De outro modo, seus apelos à razão como estrutura justificativa para a confusão na demonstração de seus sentimentos encontrava resistência na sua própria exposição. Marcelo deveria ter aprendido com Pascal que “o coração tem razões que a própria razão desconhece” e, assim sendo, não é factível à “razão racional” explicar as razões da emoção. Aliás, era isto mesmo que sustentava sua argumentação, no que concerne à explicação da estranheza de suas ações fundamentarem-se na própria essência estranha do amor.
            De fato, era então como se Marcelo estivesse dizendo: não é racional que eu seja racional; quando talvez fosse mais adequado dizer: seria estranho se eu não estivesse estranho.
            De um jeito ou de outro o discurso de Marcelo até poderia ter obtido o êxito por ele esperado, não tivesse Roberta escorregado, mais uma vez, para fora do carro, antes mesmo de Marcelo iniciar seu falatório.
            Marcelo não sabia, como nós, que o uso do pronome da segunda pessoa do singular em articulação com o verbo na terceira pessoa, por parte de Roberta, significava para ela, de forma especial, formalidade... ou melhor, “constrangedora formalidade”.
            ...“Você é estranho”, como se lembram, comentou Roberta demonstrando constrangimento... e nem bem finalizou este comentário, já escorregava seu corpo delgado e sinuoso para fora do carro...
            Marcelo viu perfeitamente quando Roberta se foi, mas, mesmo assim, decidiu proferir seu discurso. Pela primeira vez na sua vida relutava em resignar-se, simplesmente. Professaria o seu amor, mesmo que em monólogo. Sua natureza resignada lhe informava que seriam inócuos seus esforços: não se pode prender um raio de sol.
            Roberta serpenteava entre os automóveis. Sem poder ouvir as justificativas de Marcelo, ela ora escorregava, ora saltitava, ora se balançava; brincando com os obstáculos como fizera, há pouco, no playground da escola.
            Marcelo, uma vez que finalizara seus argumentos, resgatou da obscuridade do esquecimento a planilha não enviada – os carros permaneciam imóveis. Finalmente conseguiu falar com Brasília. A vida ia, paulatinamente, retomando o luscofusco característico de sua condição crepuscular. Olhando adiante, ainda lhe era possível enxergar Roberta em seus sensuais malabarismos juvenis, o que lhe fazia repetir, quase que em forma de oração: não é possível prender um raio de sol... Sua natureza resignada impunha-se mais uma vez.

2 Comentários:

Blogger Cris disse...

Muito bom!

9 de maio de 2012 às 06:17  
Blogger Wilka Dias disse...

Narrativa que prende a atenção do/a leitor/a.

16 de maio de 2012 às 09:21  

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