domingo, 5 de dezembro de 2010

Déjà vu! Ou: a força atemporal do Clássico.

Esgotos de Paris
Por Breno Rocha

...A polícia cerca a rua; a entrada principal e todos os acessos paralelos: ouvem-se tiros... da polícia e contra a polícia; moradores passam correndo, tentado abrigar-se de balas perdidas. A polícia se vê insuficiente e convoca o apoio das forças federais. Com o suporte logístico das forças armadas o bloqueio ao cerco é finalmente rompido e a polícia retoma o território, no subúrbio da cidade. Prisões são feitas, mortos são contados e, finalmente, a surpresa: escaparam ao cerco policial PELAS GALERIAS DE ESGOTO! Não é possível precisar quantos escaparam, mas, há evidências irrefutáveis: os esgotos serviram de rota de fuga

Certamente o leitor acredita que o parágrafo acima sintetiza os fatos da ocupação do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro. Tudo bem, o leitor tem razão. Mas, se fosse para relatar a fuga dos marginais cariocas ao cerco policial na “comunidade” do Rio de Janeiro, eu preferiria a enfadonha, repetitiva e fascista versão da Rede Globo: com choro de mãe, criança pintando pombinhas e BOPE fazendo segurança pessoal de repórteres privados. (Na verdade, nem preferia a da Globo, mas, a sua “cobertura” é tão intensa que não haveria muito a acrescentar).

Não paciente leitor. O parágrafo inicial de mais esta reflexão sintetiza o descrito por Victor Hugo, que em 1862 escreveu a odisséia de Jean Valjean na maravilhosa novela “Les Misérables” (Os miseráveis).

Jean Valjean, preso foragido, duplamente condenado, caçado implacavelmente pelo inspetor de polícia Javert (descrito por Hugo com características caninas, as quais inspiraram Chico Buarque de Holanda, em “o hino de Duran”, a escrever: “a lei te procura, amanhã de manhã, com seu faro de dobermann); Jean Valjean, que cometera, em toda a sua vida, o terrível crime de quebrar uma vidraça para roubar um pão a fim de alimentar os seus irmãos famintos, integra-se finalmente a uma barricada revolucionária, que luta contra a polícia parisiense e, depois, contra o exército que vem ao socorro dessa.

Barricada vencida, Valjean, após salvar seu algoz (Javert) da morte, carrega em suas costas, Mário, seu futuro genro, moribundo, numa fantástica fuga pelos esgotos de Paris.

A fuga se desenvolve ao longo de vários capítulos; os esgotos de Paris são explorados por Victor Hugo, enquanto são percorridos por Valjean; Valjean foge da polícia, Hugo fala da construção dos tuneis em 1785, para abrigar catacumbas subterrâneas; Valjean foge da morte, Hugo fala da ampliação dos esgotos, em 1850. Valjean finalmente consegue êxito, chegando com seu protegido às margens do Rio Sena, Hugo nos presenteia, através do seu ufanismo, com um sensível relato histórico acerca da importância do esgoto para a construção da grandiosidade francesa...

Hoje há um museu dos esgotos de Paris (http://ecoviagem.uol.com.br/blogs/eurotrip/boletins/pelos-subterraneos-de-paris-923.asp); parece que tudo em Paris vira “cultura”, até o mais inusitado... No museu, é claro, há uma referência em destaque para a obra de Victor Hugo.

Voltemos ao Rio de Janeiro: eu assistia ao “bom Dia Brasil” e me divertia com a perplexidade dos magnânimos jornalistas “globais” diante da “fantástica fuga” dos “bandidos cariocas” (os do morro, não os do Congresso, É CLARO!) pelo esgoto. Claudinha, então, perguntou o que tanto me divertia. Fui até a estante (as estantes saíram da sala e deram lugar às TVs...) e peguei a edição de “Os miseráveis”; mostrei à Claudinha, Jean Valjean escapando pelos esgotos de Paris há quase 150 anos atrás. Claudinha, então, zombou de mim: “são bandidos intelectuais?!”... Os magnânimos jornalistas da Globo certamente que não, pensei eu...

Falei para Claudinha da “Força do Clássico”. Não obstante os bandidos poderem, realmente, conhecer a obra de Victor Hugo, de fato, Victor Hugo não conhecia os bandidos cariocas... (entretanto, escreveu sobre algo que habita o ser de todos os bandidos... a miséria!).

Na semana anterior fui interpelado por Euclides Costa, meu querido amigo, devido a essa minha “fixação” pelos “clássicos”. Graças ao clássico, não me impressiona a fuga dos marginais cariocas pelos esgotos. Graças à fuga dos marginais cariocas pelos esgotos, os clássicos continuam me impressionando...

“A vida imita a arte”, vaticinou Nietzsche. Eis aí outro clássico!

...

Agora, numa coisa eu preciso concordar com Euclides: só sendo mesmo muito “NERD” para enxergar Nietzsche e Victor Hugo pelos esgotos cariocas, no jornaleco matutino da Rede Globo...

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