terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Esquerda, Direita, rótulos e conceitos.




Depois de um longo intervalo sem escrever para este espaço, um “problema” me impele a revisitar o “perplexivo”: a inexpressividade semântica do termo “esquerda” na política contemporânea.
Bem, é isto mesmo. Dizer-se de “esquerda”, atualmente, significa exatamente NADA!
A origem do termo é histórica. Reza a lenda que, após a primeira (fase da) revolução francesa, antes dos Jacobinos se estabelecerem efetivamente no poder... naquele tempo, durante as Assembleias que debatiam os rumos da França em crise, os que defendiam a monarquia e seus interesses posicionavam-se à direita da mesa coordenadora, enquanto os que defendiam os interesses populares posicionavam-se à esquerda. Mais tarde... só um pouco mais tarde, quando Marx estratificou a luta de classes num embate dialético entre Capital e Trabalho – estes, na qualidade de “forças sociais” –, imediatamente associou-se “direita” àqueles que lutam em prol do capital e “esquerda” aos que lutam em prol do trabalho; “de direita” aos que lutam pelos capitalistas e “de esquerda” aos que lutam pelos trabalhadores.
Contemporaneamente, após o estabelecimento do uníssono discurso da “economia acima de tudo e solução para tudo”, após a “superação da dialética entre Capital e Trabalho”, ou melhor dizendo, da subjugação do Trabalho em prol do Capital, todos os atores políticos formais (institucionalizados) concentram-se em apenas uma posição geográfica: o Capital; ou seja: a direita.
O mais recente movimento dos vencedores das eleições na Grécia – declarados pela imprensa como “da esquerda radical” – em articular um “bloco de coalizão” com a direita – com a justificativa de “salvar a economia”, exemplifica exatamente o nosso ponto de vista. Do mesmo modo, as medidas “de ajuste” do Governo Dilma.
A fórmula encontrada para produzir o “bem-estar” parece ser, finalmente, esmagar o Trabalho. Comprimi-lo, esculpi-lo em função do Capital. O que fazer se os investidores estrangeiros se evadirem? O que fazer se os banqueiros quebrarem? O que fazer se o preço das commodities despencarem? “Flexibilize-se” o Trabalho, para que tais catástrofes não aconteçam...
E, assim, “ser de esquerda” passou a “ser de direita”, mas, sem assumir. Isto é, servir ao Capital, sem um grama de coragem para assumi-lo.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Sobre Ética e Privacidade

Sobre Ética e Privacidade

Breno Rocha

Ultimamente tem ocupado a pauta da imprensa mundial o debate acerca da privacidade das “informações” que circulam pela rede mundial de computadores; inclusive do acesso aos conteúdos dos e-mails que são emitidos por todos; ou quase todos, pois, agora há pouco eu ouvia um debate na rádio, no qual um especialista declarava que “aqueles que têm e-mail pago estão mais protegidos do que os que usam o serviço gratuito” – não é incrível como absolutamente tudo vira oportunidade de se auferir lucro... para alguns?

É também registrável o nível de ingenuidade em que se encontra a imensa maioria da população, pois, crer, de fato, que uma comunicação emitida por via eletrônica seria invulnerável do ponto de vista do sigilo é, na mesma medida, acreditar na candura do caráter (humano), mesmo que todos os ensinamentos (religiosos, ético-filosóficos, políticos, sociológicos, antropológicos, etc.) alertem para o contrário... E, neste sentido, nem é preciso alicerçarmo-nos em Hobbes (“O homem é o lobo do homem”) para evidenciarmos tal constatação, pois, até Rousseau, aquele do “bom selvagem”, ressalta, (“grosso modo”) que: BONS, só quando éramos selvagens, pois, a (vida em) sociedade há muito nos corrompeu. Por outro lado, desde que inventaram a internet que se difunde que tudo o que por ela trafega fica nela registrado para sempre...

O debate, que a propósito apresentava até bem pouco tempo um entendimento quase unilateral acerca da inadequada postura do Governo estadiunidense – postura que parecia ser defendida apenas pelo próprio Governo estadiunidense –, ganhou outro fôlego quando gigantes das operações eletrônicas, como o Google, reconheceram, afirmaram e defenderam que “também valem-se do acesso às informações trocadas nos e-mails de seus usuários para ofertar-lhes produtos e serviços”.

Este debate, finalmente, promoveu para mim uma derivação analítica (com o perdão da sugestão analógica com a Matemática: eu não quis fazer trocadilhos... desta vez!). Suscitou-me uma reflexão acerca da possibilidade concreta da efetivação do conceito de PRIVACIDADE. É, de fato, possível ter PRIVACIDADE? Isto é, fazer algo intimamente, privativamente?

Fiz uma análise parecida, há anos atrás, sobre o conceito de SEGURANÇA. Tal análise encontra-se registrada no primeiro livro que lancei e, nela, concluí que a SEGURANÇA pode apenas ser “pressuposta” ou efetiva no passado, mas, nunca plenamente garantida no futuro nem no presente.

Para expor toda a derivação formal da análise sobre o conceito de SEGURANÇA eu precisei de um capítulo do livro e, é claro, sei que não poderia usar o mesmo “espaço” aqui, neste blog, para fazer a análise que gostaria do conceito de PRIVACIDADE. Portanto, vamos resumi-la ao que nos pareça suficiente:

Toda ação efetivada resultará numa intervenção direta. Quando agimos, mesmo que minimamente, modificamos: o ambiente, as pessoas ou nós mesmos. Esta ideia aparece no aforismo de Heráclito: “o mesmo homem não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois, da segunda vez não é mais o mesmo homem, nem o mesmo rio”. Uma vez que vivenciou a primeira experiência de banhar-se no rio, o homem modificou-se quanto aos seus conhecimentos e expectativas acerca do banho naquele rio. Estes, ou lhe foram confirmados ou alterados. De uma maneira ou de outra, agora ele é um homem diferente. A ação de, finalmente, entrar e banhar-se no rio, modificou o homem... Mas, também modificou o rio, que já se modifica constantemente devido às forças da correnteza, mas, que teve seu curso (minimamente) alterado pela presença do corpo do homem; que teve seu leito alterado pelo deslocamento do homem; que teve sua fauna e flora alteradas pela presença do homem.

É preciso registrar, nesse instante, que não estamos avaliando a intensidade direta das alterações nem suas repercussões indiretas, mas, suas existências factuais.

Uma vez que agimos, alteramos: o ambiente, as outras pessoas ou nós mesmos... Deste modo, uma vez que agimos, as evidências de nossa ação ficarão registradas: no ambiente, nas outras pessoas ou em nós mesmos... Assim, mesmo em forma de “vestígios”, nossas ações sempre serão “públicas” e, sendo públicas (obviamente) não são privadas. Daí (talvez) a “sabedoria popular” ensinar que “nada é feito em segredo!”

Um minuto, leitor! Tenha mais um pouco de paciência, pois ainda falta analisarmos a PRIVACIDADE do ponto de vista da IDEIA, isto é, quando não agimos; apenas pensamos sobre. (Assim, como em Lulu Santos: “...uma ideia que existe na cabeça e não tem a menor pretensão de acontecer”).

No mundo das ideias, como diria Platão, nossa investigação fica muito mais difícil: isto porque será (num futuro próximo e num espaço próprio, nos quais esta reflexão se aprofunde) necessário que dividamos as ideias em categorias como: desejo, pensamento, lembrança, saudade, etc. Pois, neste momento, passa-me pela cabeça que cada tipo ideia produzirá um impacto próprio. Entretanto, para a oportunidade resta registrar que, mesmo as ideias “que não têm a menor intenção de acontecer”, isto é, de virar ação; e que, por isto mesmo não produzirão modificações nem em nós mesmos, podem vir a ser reveladas pelo que a Psicanálise freudiana denomina de “Ato Falho”. Assim, mesmo que não tenhamos ainda uma conclusão sobre a completa PRIVACIDADE das ideias, a possibilidade do “Ato Falho”, per si, nos indica o caminho de que, mesmo essas podem não ser, em tudo e completamente, intimas.

Isto visto, não devo reorientar minha existência em prol de uma postura paranoica, mas reorientá-la num sentido ético, qual seja: agir compreendendo que todas as minhas ações, mesmo as que julgo mais intimas, terão repercussões  no ambiente, nos outros e/ou em mim mesmo.

Quanto às ideias, conquanto não tenhamos efetivado satisfatoriamente nossa investigação, não é estranho a todos que é sempre melhor termos pensamentos bons!


Finalmente, estas reflexões não se destinam a isentar, legitimar ou aceitar que o Governo estadiunidense, o Google ou qualquer outro provedor de e-mails utilizem-se (da troca) de nossas informações pessoais para quaisquer fins não previamente autorizados por nós. Eu também me declaro contra tal prática. Mas, talvez as presentes reflexões atenuem a nossa ingenuidade quanto a privacidade na troca de informações eletrônicas... E, principalmente, repercutam-se na nossa postura enquanto ser no mundo.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

“É proibido proibir”: o problema contemporâneo da Liberdade de Imprensa



“É proibido proibir”: o problema contemporâneo da Liberdade de Imprensa


Por Breno Rocha


Efervesce – e preocupa – a, cada vez mais, polêmica e acirrada discussão sobre a liberdade de Imprensa no Brasil, que, a semelhança do que ocorre em outros países, ao valer-se do eufemismo “controle”, tenta dissimular o que de fato está por trás do debate: o intuito de produzir-se, aos auspícios da Lei, a censura prévia.
Censurar a Imprensa não é propriamente uma novidade no nosso país. O governo Militar, a propósito da “Segurança Nacional”, aprovou em 09.02.1967 a “Lei de Imprensa” (Lei N° 5.250), que vigorou até bem recentemente, quando em 30.04.2009, o Supremo Tribunal Federal finalmente a revogou, após proposição do então Deputado Federal Miro Teixeira, o qual arguiu acerca do descumprimento dos preceitos fundamentais da nossa Constituição por parte da referida legislação, o que culminou no julgamento da sua inconstitucionalidade.
                Há alguns aspectos gerais nesse debate: é de se destacar, por exemplo, que ele vem sendo pauta diferenciada de governos caráter populista (Venezuela, Argentina, Brasil e, mais recentemente, Equador são exemplos da adoção dessa pauta); que, invariavelmente, o argumento utilizado por todos os que querem “controlar” a Imprensa é a densa concentração dos veículos de comunicação em pequenos grupos – às vezes, famílias – de proprietários; que, por isto mesmo, os veículos de comunicação têm sido instrumento da defesa dos interesses desses “grupos” e não do interesse público; etc. Mas, os aspectos particulares – atinentes ao Brasil – são os mais bizarros!
                Principalmente por ter se livrado tão recentemente de uma Lei que “controlava” a Imprensa é que o Brasil se faz num ótimo observatório para este tema.
                Não é interessante que um instrumento (a Imprensa) se afigure igualmente ofensivo à “direita” e à “esquerda”? ...Pois, não deveria ser. Karl Marx, o filósofo alemão que, entre outras “virações”, labutou como jornalista na Alemanha e na Inglaterra – e, obviamente, foi processado devido aos seus escritos jornalísticos – enquanto se defendia no Tribunal de Colônia, num dos processos que sofreu, sentenciou no final do seu discurso/depoimento: “O primeiro dever da imprensa, portanto, é minar todas as bases do sistema político existente”.
                Curiosamente, ou não, o pronunciamento de Marx foi publicado no jornal no qual ele trabalhava como editor, o “Neue Rheinische Zeitung”, com o seguinte título: “O papel da Imprensa como crítica de funcionários governantes”. A curiosidade está, prezada leitora, na alvissareira atualidade desse título: não parece que só ele é necessário para entendermos o porquê das perseguições a Julian Assange (wikiLeakis) e à blogueira cubana, Yaoni Sánches? Mais curioso ainda é que, devido às esquisitas peculiaridades do Brasil, encontraremos quem, com a mesma ênfase, defenda um e ataque a outra!
                Os textos de Marx sobre liberdade de Imprensa foram compendiados e publicados no Brasil com o título “Liberdade de Imprensa”, pela editora L&PM Pocket, em 2006. No decorrer dos discursos, Marx defende que, enquanto conceito, a liberdade não pode ser fragmentada em categorias; e vai além quando sentencia: “Ninguém luta contra a liberdade; no máximo, luta-se contra a liberdade dos outros. Por isto, todos os tipos de liberdade existiram sempre, às vezes como prerrogativa particular, outras como um direito geral.”
                Mas, não é essa mesma a transcendência do discurso sobre o “controle” da Imprensa no Brasil quando o Governo brasileiro (e também o venezuelano, o argentino, o equatoriano) ao invés de procurar aprofundar a Liberdade de Imprensa, procura “controlar” tal liberdade? Explico: se o interesse governamental não é a censura, não é “lutar contra a liberdade dos outros”, por que então, ao invés de controlar, não incentivar a prática? Se o problema é que, os anos e anos de “governos comprometidos com as elites” produziram uma Imprensa consequentemente comprometida com a elite, por que, então, não incentivar as imprensas de classe, de bairro, de clubes, etc.?
                Não seria, de fato, um ambiente de liberdade de expressão aquele no qual, no domingo de manhã, estivesse disponível nas bancas de todas as cidades, ao lado da Revista Veja, da Carta Capital, do Jornal O Globo, da Folha de São Paulo...; o Jornal do Sindicato dos Bancários, do Sindicato dos Professores, dos Policias, dos Estudantes, dos Católicos, dos Evangélicos, dos Terreiros de Candomblé, dos Músicos, dos Poetas, desse e daquele Bairro... de todos os que efetivamente tivessem notícias e pontos de vista a apresentar?; que o leitor, ao se deparar com uma análise econômica na Revista “Tal” pudesse pedir ao jornaleiro um exemplar do Jornal ou da Revista do Sindicato dos Economistas, para saber a opinião dos profissionais da área sobre o assunto?
                Porem, no Brasil a restrição tem sido sempre a primeira via para a “solução” dos problemas sociais... E isto é tão emblemático que encontramos, sob forma de paradoxo, a negação da negação como expressão máxima da luta pela liberdade nos anos de mobilização pela democracia: “É proibido proibir!”
                Mais uma vez, a peculiaridade do Brasil faz com que invertamos, inclusive, o fluxo do interesse social e, ao invés de pautarmos o governo, assumimos como nossa a sua pauta e, deste modo, quando deveríamos pugnar por liberdade de expressão e informação, nos concentramos em reverberar o apelo governamental em calar os veículos de Imprensa; aliás, eu escrevi “calar”, mas pode-se ler controlar, se for mais palatável...
O fato é que, ao invés de lutarmos para a ampliação dos espaços de informação, como, por exemplo, pela regulamentação das rádios comunitárias, nas quais ouviríamos as notícias específicas do nosso bairro; invés de lutarmos pela regulamentação das TVs comunitárias, nas quais, os sindicatos poderiam utilizar como canais de divulgação de suas lutas... fazemos coro para que se controle a Rede Globo, se feche a Revista Veja ou se processe o editor da Folha de São Paulo!... E assim, materializa-se a sentença marxista: lutamos contra a liberdade dos outros! Ao invés de lutarmos pela ampliação da nossa própria, eu tomo a liberdade de acrescentar.

domingo, 4 de novembro de 2012

Liberdade Vigiada; Territórios Ocupados; Gueto de Varsóvia... Assim se esvai a liberdade!

Gueto de Varsóvia (imagem da internet)

Rocinha - RJ (imagem da internet)





Liberdade Vigiada; Territórios Ocupados; Gueto de Varsóvia... Assim se esvai a liberdade!

Por Breno Rocha

Num fim de tarde desses, noutro dia, no trajeto de minhas odisseias do cotidiano, ouvia no rádio uma entrevista com o secretário de segurança de Minas Gerais (ou alguém que o valha). Me chamou a atenção que ele estava comentando sob o plano do governo mineiro em “pacificar as favelas”, a exemplo da “exitosa experiência do Rio de Janeiro”; então eu pensei: mais uma! Dois dias depois, vi na TV uma matéria sobre o plano da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo em “pacificar as comunidades” também naquele Estado; aí entendi: a coisa tá mesmo ficando séria! É preciso abrir uma profunda discussão sobre esta “tática”, antes de termos “Guetos de Varsóvia” espalhados por todo pais.
Tá bom, você acha que eu estou exagerando, não é? Então vamos lá! Lembra aquela inconveniente revista policial; aquele “mal necessário” efetuado pelas “blitz” da Polícia Militar, que se iniciaram e espalharam pelo país nos anos 90 do século passado? É que eu acho “estiloso” escrever assim: “no século passado”, mas, de fato, significa que há mais ou menos duas décadas apenas, abrirmos mão do nosso Direito Constitucional de “sermos inocentes até que se prove o contrário”, invertendo a lógica legal, digo, a lógica COSNTITUCIONAL, e nos permitimos ser interrompidos no nosso direito de ir e vir para, neste hiato legal, provarmos, sob revista policial, que somos inocentes. Pois é, aquela “concessão” de direitos que fizemos, abdicando de “um pedacinho” de nossa liberdade em prol da segurança – como fies discípulos de Hobbes – cristalizou-se de modo tão efetivo para o “Leviatã tupiniquim” que hoje, pouco mais ou menos de duas décadas, eu insisto, é o Estado quem não abre mão do “direito” de nos interromper a rotina, para “amolegar” nossos corpos com seus tentáculos hobbesianos. E sabe o que é pior? Achamos “normal”... Não, pior ainda: nos sentimos felizes e seguros! Felizes e seguros por convivermos com uma “exceção rotineira”, só permitida nos países desenvolvidos em caso de guerra ou calamidade...
Devagarzinho e sempre o “Leviatã tropical”, sob os auspícios da esquerda fascistóide, foi “arrancando nossa cerca, invadindo nosso quintal e pisando nas nossas flores...”. Foi-nos imposta a Liberdade Vigiada das câmeras de monitoramento; arbitrariedade que se tivesse sido idealizada pelos generais da ditadura, certamente mereceria o repúdio através de passeatas de dez, cem mil... Mas, hoje, são os governos de esquerda que vigiam nossa liberdade... e como não será a direita a reclamar por isso...
Não bastassem as revistas corporais e, mais recentemente fluídicas (pois não esqueçamos da “Lei Seca”, segundo a qual precisamos comprovar através de nossos ares e fluídos corporais que, perante esta, somos também inocentes; ou seja, não roubamos, não matamos, não transportamos material ilícito... e nem bebericamos); não bastassem as câmeras, vigiando nossa liberdade (exceção que outrora era imposta apenas a certos tipos de condenados); agora precisamos conviver com mais essa exceção de guerra: os Territórios Ocupados.
É obvio que, para uma população que passou a vida entregue aos bandidos, sem qualquer atenção estatal, a troca hobbesiana da liberdade pela paz se apresenta vantajosa. Pois, se antes essa população era oprimida pelos traficantes na favela e pela Polícia na urbe (Que beleza! Inventei um antônimo para favela...), agora tem apenas a Polícia para lhe oprimir e, pelo menos aritmeticamente, um opressor é bem melhor que dois.
Mas, quando descrevemos a cena de uma população inteira que, completamente ou por amostragem, é revistada ao sair e retornar da área onde mora; que, se não reside naquela área, ao entrar, precisa esclarecer aos representantes do Estado para onde vai e o que lá pretende fazer; que pode, é claro, sair PARA TRABALHAR e consumir os produtos industriais e culturais da urbe, mas, que o esforço é para que o Estado forneça lá mesmo, os meios de acesso para satisfazer suas necessidades... E, quando constatamos que a imensa maioria dessa população é pertencente a uma mesma etnia... A cena não nos parece familiar? Não assistimos a ela em Varsóvia, na Polônia? Nos Territórios Ocupados da Palestina: Cisjordânia e em Jerusalém; da Síria: Colinas de Golã; e no Território libanês: Fazendas de Shebaa? Só que no Brasil é patrocinado pela “esquerda”...
Eu sei, eu sei: você acha que eu estou exagerando... Que a “Pacificação de Favelas” é um recurso extremo, apenas utilizado como recurso de exceção... Pois então, saiba que em 2008, foi instalada a primeira Unidade de Polícia Pacificadora, no Morro de Santa Marta, no Rio de Janeiro (Fonte: http://www.terra.com.br/turismo/infograficos/passeios-rio/); em 2009, subiu para 07 (sete), o número de “Favelas pacificadas” (Fonte: http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1435915&seccao=CPLP); "Hoje, 18 UPPs estão espalhadas por 29 favelas cariocas" (idem, ibidem). Eu fiz até um gráfico, para você entender melhor como uma exceção se transforma em regra:



O gráfico apresenta um crescimento vertiginoso de “Favelas Pacificadas” que coincide rigorosamente aos ciclos eleitorais do país; ou seja, a cada dois anos, desde 2008, as “Pacificações” são astronomicamente recrudescidas. E agora, anuncia-se a exportação do modelo para São Paulo e Minas Gerais.
É claro que se faz necessário medidas urgentes para conter a criminalidade. Mas, penso que é preciso que se desenvolvam, também, medidas inteligentes de combate. É sempre mais fácil dizer não, proibir, impedir. Isto se apresenta invariavelmente como a solução mais rápida. Entretanto, a que custo? Para combatermos dezenas ou centenas de criminosos é de mesmo necessário sitiar milhares ou milhões de pessoas honestas? Não é este o preço, não da segurança, mas, da nossa incompetência?
E quanto à nossa omissão geral frente a esta crescente violação dos direitos individuais? Nossa ética é suficiente, apenas, para buscarmos “a forma menos traumática” de se violar os direitos dos pobres? (“e são quase todos pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres”) “Com licença, senhora: preciso revistar a sua bolsa para provar que a senhora é inocente...” É este o máximo nível de ética que, em nome da segurança, podemos alcançar?!
Eu sei... Eu sei! Você ainda acha que eu estou exagerando. Mas, lembra aquela inconveniente revista policial; aquele “mal necessário” efetuado pelas “blitz” da Polícia Militar, que se iniciaram e espalharam pelo país nos anos 90 do século passado? Ela não apenas não resolveu o problema: ela era o anúncio de outras medidas mais invasivas; mais radicais. E hoje a achamos “normal”... Não, pior ainda: nos sentimos felizes e seguros! Felizes e seguros por convivermos com uma “exceção rotineira”, só permitida nos países desenvolvidos em caso de guerra ou calamidade...

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A imprensa, os seus “articulistas” e a dinâmica social.


A imprensa, os seus “articulistas” e a dinâmica social.


                                                                       Paulo Francis
(1930 - 1997)

Breno Rocha
Recife, inverno de 2012.

Li uma coluna jornalística agora há pouco, escrita por um importante articulista muito citado, inclusive, em trabalhos acadêmicos (o qual não quero citar o nome, pois não me interessa dar destaque à pessoa, mas, refletir sobre o assunto). Nesta coluna, escreveu o jornalista sobre as recentes greves no setor público federal: "greve remunerada não é greve; é férias!" (a pontuação é minha).

É muito "interessante" a postura desses "megapensadores" da sociedade contemporânea sobre um assunto do qual eles NADA entendem! A população em geral - que constantemente se deixa influenciar pelas opiniões desses "articulistas" - não tem ideia de como eles (os “articulistas”) estão afastados dos problemas sociais cotidianos e de quanto estão muito mais aproximados dos padrões dos patrões do que dos empregados; e, finalmente, de como esta realidade interfere diretamente na formação de suas “opiniões”.

À Imprensa contemporânea sobrou a tarefa de nos impor a pauta diária: desde o primeiro jornal da manhã – independente do veículo (impresso, rádio, TV, internet...) – até último, na madrugada, os editores estão escolhendo o que é relevante para nós sabermos e/ou pensarmos a respeito. De maneira mais ousada e RADICAL, cabe, assim, aos “articulistas” influenciar “o que pensamos” sobre que já foi definido como pauta (o que pensarmos sobre o que pensamos).

Acrescente a este fenômeno uma cultura arquitetada na estética do CERTO (bom, belo) e ERRADO (ruim, feio) e teremos a verdadeira materialização daquilo que George Orwell (1903 – 1950) denunciou como “Ministério do Pensamento”: materialização esta que funciona da seguinte maneira; primeiro os órgãos de imprensa definem a Pauta, isto é, para “o que” devemos direcionar a atenção; segundo, os “articulistas” opinam sobre esta Pauta indicando, a partir da sua “autoridade no assunto”, os “acertos” e “erros” identificados na análise daqueles assuntos da Pauta; terceiro, nós, uma vez que já temos “no que” pensar (a Pauta) e “como pensar” (o que é “certo” ou “errado” naquela Pauta), começamos a nos manifestar e nos comportar sobre tais assuntos, obviamente, da forma “certa”.

Desta maneira, encontramos nos ônibus lotados as pessoas discutindo a importância da “Reforma Tributária” e de suas repercussões positivas para a economia; ou “reconhecendo” a incapacidade financeira do país em sustentar um modelo previdenciário “tão ultrapassado”... Todos, invariavelmente, concordando com as conclusões emanadas pelos principais “articulistas” das principais empresas de comunicação jornalística.

O que a maioria das pessoas não sabe... ou, sabe mas não reflete... ou, reflete mas não externa porque têm medo de errar – como puro reflexo do nosso modelo educacional – é que tais “articulistas” são, invariavelmente, milionários... ou, caminhando nessa direção.

Quando um desses “articulistas”, por exemplo, muda de emissora de televisão, ficamos todos impressionados com o salário que ele passará a receber! Ficamos impressionados mas, nem sempre, associamos essas remunerações às opiniões que eles emitem cotidianamente.

Os colunistas dos jornais e revistas ganham em média – e esta média vai variar de acordo com o prestígio que ele acumule –, R$ 7 mil por veículo no qual aquela coluna (diária ou semanal) é publicada. Se “fulana”, por exemplo, publica a mesmíssima coluna num jornal de São Paulo, de Recife e de Salvador, por exemplo, são R$ 7 mil por jornal; por dia ou semana, a depender de quantas vezes “Fulana” publica.

Uma vez, um amigo meu que é jornalista, conversando sobre as frustrações da profissão, me disse que a primeira coisa que ele ouviu do editor, quando iniciou o estágio curricular, foi: “quem pensa em escrever o que quer, funda seu próprio jornal”. E, na vida real, é mesmo assim: a revista “Tal” é financiada (pelos seus patrocinadores) para questionar sistematicamente o Governo; pois seus jornalistas produzirão matérias denunciativas, focadas nos aspectos menos fortes da gestão pública. A revista “Qual”, entretanto, é financiada para reforçar a ação governamental? Então a lógica é “rogorozíssimamente” inversa. Até as revistas de “fofoca” funcionam a partir desta lógica.

O único mote que une todos os vieses do jornalismo formal está relacionado aos assuntos que se refiram diretamente à manutenção do sistema: aí, todos os focos, todas as opiniões seguirão o mesmo fluxo. Foi assim com a reforma da previdência; é assim com a reforma tributária; é assim com a reforma agrária; é assim, todo ano, com o valor do salário mínimo... Todas as opiniões são concordantes; ou, discordantes “ma non troppo!”

Voltemos ao nosso próprio “mote”: o que entende um “articulista” sobre greves? Quando foi, na história do nosso país (ou mesmo mundial) a última greve de jornalistas?

O desconto ou não dos dias parados fará parte do acordo que porá fim à greve e, por isso mesmo, dependerá diretamente da correlação de forças que se estabeleceu, de modo que a parte que estiver mais fragilizada (patrão ou trabalhador) no final do movimento arcará com o ônus do próprio movimento. Entrar numa greve, ou encaminhá-la, aceitando antecipadamente pagar o seu ônus é, de fato e de direito, assumir a postura de derrotado – para qualquer dos lados envolvidos. Mas, como poderia saber disso o “articulista”? O que entende ele de greves? Quando participou da última? Quando viveu a necessidade de por em risco seu emprego e seu sustento para, paradoxalmente, defender seu emprego e seu sustento? Ou, pelo contrário, não quer o “articulista”, exata e conscientemente, sugerir o enfraquecimento dos trabalhadores em greve, inferindo que estes deveriam ter, a priori, os dias parados descontados, como forma de defender seu próprio (dele, “articulista”) emprego e seu próprio sustento?

Por que escolhi a foto de Paulo Francis (1930 – 1997) para ilustrar esta reflexão? Porque, enquanto escrevia, me ocorreu que Francis foi uma das exceções à regra: isto é, um articulista que conseguiu sobreviver escrevendo em consonância com suas convicções, independente do quanto politicamente incorretas, controversas ou polêmicas elas fossem. Era lido, amado e/ou odiado por ter a coragem de expor suas ideias, não por seguir o fluxo... E assim, ao que parece, sobreviveu e sustentou-se.

domingo, 12 de agosto de 2012

Glauber Rocha: "Uma estética da fome"


{“Uma estética da fome”, manifesto de Glauber Rocha pelo Cinema Novo. Reproduzo em reconhecimento à sua atualidade... e em memória à genialidade infelizmente pouco (re)conhecida do cineasta baiano}


Uma Estética da Fome
(Glauber Rocha, 1965)


Dispensando a introdução informativa que se tem transformado na característica geral das discussões sobre América Latina, prefiro situar as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como um sintoma trágico, mas apenas como um dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.
Eis - fundamentalmente - a situação das artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da arte mas contaminam sobretudo a terreno geral do político. Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob as tardias heranças do mundo civilizado, heranças mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista. A América Latina (AL), inegavelmente, permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador; e, além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes. O problema internacional da AL é ainda um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará sempre em função de uma nova dependência.
Este condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e no segundo a histeria. 
A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da universalização: artistas que não despertaram do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo, provocaram inclusive falências). O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, vários coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas revistas literárias, os concursos, os títulos.
A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo pornográfico que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas sim de um titânico e autodevastador esforço no sentido de superar a impotência: e, no resultado desta operação a fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador: e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo, mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento.
A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.
De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo, hoje tão condenado pelo Governo do Estado da Guanabara, pela Comissão de Seleção para Festivais do Itamarati, pela crítica a serviço dos interesses oficiais, pelos produtores e pelo público - este último não suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, e de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil, ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filmes. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de '30, foi agora fotografado pelo cinema de '60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto das Caixas), ao social (Vidas Secas), ao político (Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco Vezes Favela), ao experimental (Sol sobre a Lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo). à comédia (Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o período das grandes crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução que culminou no golpe de abril. E foi a partir de abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.
Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto: e. sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós - que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto - que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem, mais agravam seus tumores. Assim. somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.
A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e da ufanista mentira cultural: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem criar professores. de construir casas sem dar trabalho, de ensinar o ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no campo internacional, nada pediu: impôs-se pela violência de suas imagens em vinte e dois festivais internacionais.
Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?
Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo; foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.
De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e transformação.
O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; a Dandara de Ganga Zumba foge da guerra para um amor romântico; Sinhá Vitoria sonha com novos tempos para os filhos: Rosa vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês e para isto tentará reduzir a vida do marido à um sistema medíocre.
Explicação: Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique, à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano: além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos novos e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade, e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura intelectual, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na moral que pregar: não é um filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público a consciência de sua própria miséria.
Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial. a não ser com suas origens técnicas e artísticas.
O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas conseqüentes de sua existência.
Glauber Rocha
Nova Iorque, Milão, Rio Janeiro - 1965

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012


Não se pode prender um raio de sol

Um conto de Breno Rocha
(escrito durante o carnaval de 2012)

Capítulo I
Insone Felicidade

Naquele dia ele acordou ainda de madrugada. O sol estava tímido... ou preguiçoso. Seus raios ainda não infestavam a terra de vida e de verdade. O quarto era permeado pelo luscofusco do quase amanhecer... Não sonhara, nem teve pesadelo; então, por que acordara antes do despertador?
O que sentia, e que o havia despertado, era a falta: sentia sua falta! Era como se ela nunca mais voltasse a estar ali, no seu quarto... na sua cama... Mesmo que, de fato, ela nunca esteve ali...
Então, perguntava-se: como posso sentir sua falta? É possível sentir a falta do que nunca se teve? É como se fosse possível sentir saudades do futuro... É pior! É como se fosse possível sentir saudades de um futuro extremamente improvável... Como sentir saudades de passeios pela gravidade da lua...
Sua saudade era, então, saudade do desejo (que lhe consumia) – ele concluiu enquanto abria o chuveiro na expectativa de que a água fria afastasse de suas narinas o seu cheiro doce... Indiferente a toda aquela água e espuma, ela insiste em permanecer consigo. Isto é, em permanecer sem nunca estar... como um espectro! (que desafia, inclusive, a lógica gramatical).
A felicidade é, portanto, um espectro que nunca se materializa, exceto na condição de desejo - filosofa ele, enquanto sorve a perfumada xícara de café.
Resignado, ele desce as escadas e sai. Nem olha para trás... nem precisa: ele sente que ela também vem... o acompanha... e o acompanhará o resto do dia; talvez até, o resto da vida... convertendo-se em sua felicidade, materializada na forma (espectral) de desejo.

  Capítulo II
A festa da latifundiária do tempo

... E, finalmente, ela despertou! Não se pode dizer que está atrasada, pois o tempo ainda lhe pertence. Assim é o tempo: uma dessas coisas que, quanto mais nós temos, muito mais é nossa! Sendo o inverso dramaticamente proporcional; isto é, no que se refere ao tempo, quanto menos o temos, mais nos deixamos por ele escravizar.
                Do ponto de vista do tempo, ela ainda é plenamente livre. Do cume de sua juventude, olha para o horizonte e diz – sobre o tempo que vê pela frente – com a arrogância dos latifundiários que contemplam suas posses: “até onde vejo; é tudo meu!”.
                Pessoas assim, latifundiários do tempo, nunca podem estar, de fato, atrasadas, pois, não obstante o prisma do qual se observe, estão sempre “acabando de chegar”. É por esta razão que, apesar do sol já encontrar-se abundando de vida e de verdade todas as coisas, com seus raios comichantemente dourados, não se pode dizer que ela acordava atrasada. Pode-se dizer, entretanto, que ela acordava em festa!
                Seu corpo delgado e sinuoso serpenteava, escorrendo da cama. Um salto de bailarina e o chuveiro aplaudia, em cascata controlada, sua performance matinal. Seu cheiro doce infestava o dia. Escolhia a roupa como quem apostava na roleta... e todos os dias eram seu dia de sorte...
                Assim, como se saísse de um musical americano, corria para o trabalho – corria, desculpem-me mas preciso insistir nisto que é muito importante, não por estar atrasada, mas porque é peculiar aos que não tem motivos para ter pressa, correr por pura diversão.
                Um ônibus, o trem, outro ônibus... e ela, ora escorregava, ora saltitava, ora se balançava; brincando com os obstáculos como fizera, há pouco, no playground da escola. A felicidade, para ela, era um conceito concretamente abstrato: não sabia, ainda, descrevê-la; mas, praticava-a plena e constantemente...

Capítulo III
Quando a aurora encontra o entardecer...

                Aquele era o dia 11 de junho, data que os antigos romanos dedicavam à Fortuna, deusa, filha de Júpiter, que, uma vez estando vendada, distribuí boa e má sorte, aleatoriamente, entre os humanos.

                Marcelo se via no meio de um enorme engarrafamento – evento que, de tanto se repetir no Recife, já não podia ser atribuído à deusa romana. Já havia mais de meia hora que os carros sequer conseguiam se mover. Na sua impaciência, tentara de tudo, buscando uma maneira de tornar produtiva aquela estática. O pior: deveria encaminhar aquela importantíssima planilha para a sede da empresa, na capital federal, e ontem o sistema... – Sempre o sistema! Repetia ele quase que em forma de uma oração – o sistema caiu, impedindo que ele finalizasse o lançamento dos dados. Telefonou para sua assistente: ela também estava presa na imobilidade do transito recifense. Ligou para Brasília, tentando justificar o inevitável atraso, mas o horário de verão impedia sua comunicação, uma vez que o expediente em Brasília ainda não havia iniciado. Resignado – e resignar-se parecia ser sua característica mais marcante – ligou o rádio, na esperança de que ouvisse alguma boa notícia sobre o trânsito caótico.
                Sentada na cadeira da janela do ônibus que estava parado no engarrafamento exatamente atrás do carro de Marcelo, encontrava-se Roberta, que ria, divertindo-se com aquela situação; afinal, TODOS, e não apenas ela, chegariam tarde ao trabalho.
                Não é exatamente assim que age a Fortuna? A sorte de uns, o azar de outros...
                Roberta, como dissemos, divertia-se: zombava da impaciência dos outros – de dentro e de fora do ônibus – enquanto ouvia a música que lhe chegava aos ouvidos através dos headfones conectados ao celular... Até que a Fortuna agiu mais uma vez: a bateria do telefone de Roberta acabou! Sem a música, como trilha sonora para aquele bizarro evento de caras feias, impaciência, mau-humor, buzinas e palavrões ao telefone, aquilo começava a ficar entediante. Ela, então, resolveu agir para solucionar o problema. Enquanto se levantava e caminhava em direção à porta do ônibus, pensava e voltava a sorrir: “Se fosse a mulher maravilha, eu punha fim a este engarrafamento e resolvia o problema de todo mundo. Mas, como não sou, vou atrás de carregar o telefone e resolvo o meu!
                Roberta desceu do ônibus e caminhou indefectívelmente até o carro de Marcelo, bateu na janela, o que lhe fez baixar o vidro e ouvir: “Posso carregar meu celular no teu carro?”
                Roberta é assim: informal. Sua franqueza faz com que trate as pessoas de maneira direta... quase intima. Ela, quase sempre, usa a segunda pessoa do singular para todos... quase sempre, a não ser que a ocasião (ou a pessoa) exija uma, para ela, constrangedora formalidade.
                Marcelo, abduzido da sua expectativa por boas notícias sobre o trânsito no rádio, ouviu a pergunta de Roberta como se fosse uma voz de comando: abriu a porta do carro e ela, conforme nos informa nossa lembrança, serpenteou seu corpo delgado, escorregando para o banco do passageiro...
                Eu sou Roberta! O trânsito do Recife tá uma merda, tu não concordas? Eu vou carregar minha bateria e o carro nem se move, queres apostar? Onde está o teu carregador?
                Para Marcelo, outra voz de comando.
                Em atendimento, ele abriu o portaluvas, pegou o carregador e entregou a Roberta.
                Tu não falas muito, não é? Como é teu nome? Tu vais até onde? Porque, dependendo, eu nem volto para o ônibus... Vou de carona contigo.

Capítulo IV
“Here comes the Sun...”

                Marcelo era executivo e como tal sabia reconhecer uma boa oportunidade. Olhando Roberta valsar dentro do carro, ali... bem na sua frente, escutava materializarem-se os versos daquela canção: “pra renovar meu ser, faltava mesmo chegar você...”
                A aurora não pode reconhecer o entardecer, pois nunca o viu; nem se dá conta de sua existência... não entende que aquele, uma vez que é seu antípoda, lhe completa. A recíproca, entretanto, é quase que instantaneamente reversa: visto que já fora aurora, o entardecer a reconhece saudosamente...
                Marcelo reconhecera a aurora em Roberta e entendera, quase que instantaneamente, que ela possuía, em essência, o que ele perdera ao longo das frustrações da vida. Ela era um raio de sol perturbando aquele luscofusco no qual sua vida houvera se transformado. Era Apolo, espalhando verdade na rotina de hipocrisias que lhe cercava... “here comes the sun...” (“agora ficou fácil, todo mundo compreende aquele toque Beatles...”).
                Proativo, Marcelo engoliu seco e retornou às perguntas de Roberta, com a voz macia e amistosa:
                - Roberta! Isto é alguma pegadinha, ou coisa do gênero? Tirei eu a sorte grande? Quantas são as chances de se ter o carro invadido por Vênus? Fique à vontade, deusa grecorromana! Tenho esperado a vida toda para servir-te...
                - Vênus!? Você não quer dizer Medusa? – brincou Roberta, escorregando, dessa vez das gentilezas de Marcelo, enquanto procurava no retrovisor um novo alinho para seus cabelos.
                Marcelo sorria: estava de fato feliz. A presença de Roberta lhe provocava felicidade. Ele se sentia como se a conhecesse a vida inteira – e isto não passava da sensação provocada pelo seu próprio reencontro com a aurora –, por esta razão, sentia-se muito à vontade na sua presença. Por isto, também, não se fez de rogado com o desconversar de Roberta:

                - Pronto! Eu não disse?! É mesmo uma deusa olímpica. O que mais explicaria que uma mocinha tão jovem conhecesse sobre mitologia?
                - A leitura? Respondia Roberta com uma sinceridade tão direta, que até poderia ser confundida com ironia.
                Roberta era, realmente, uma “mocinha tão jovem”. Por esta razão, tal expressão não lhe causava, ainda, o efeito elogioso esperado por Marcelo. Ambos viviam, naquele início de conversa, a consequência provocada pela diferença de gerações que se manifesta num certo descompasso na comunicação, provocado por um tipo de desconexão entre sentidos e contextos... A próxima tentativa de diálogo, demonstrará o problema com maior exatidão:
                - ...bem – continuou Marcelo sentindo-se sem graça, mas, ainda sem sinais de que desistiria – respondendo à sua outra pergunta: agora tenho certeza de que estou indo rumo à felicidade! Mas, só chego lá se você realmente não voltar para o ônibus, e continuar comigo...
                - Você é estranho... Comentou Roberta, agora um pouco constrangida.

Capítulo V
Veritas Lucet Ominia
(A verdade ilumina todas as coisas)

                Marcelo começava a entender o insucesso de suas investidas. Todo aquele floreio, todo aquele rodeio... aquela não era, efetivamente, a linguagem adequada para a situação. Suas tentativas de galanteio estavam, de fato, aborrecendo Roberta. De outro modo, ele não sabia ao certo como agir. Encontrara em Roberta a verve que reorientava o sentido de sua vida. Marcelo sempre acreditara em amor à primeira vista. Na verdade, sempre apaixonava-se à primeira vista... às vezes duas, três vezes por dia... Mas, essas eram paixões “de verão”: uma daquelas brisas que trazem frescura às tardes quentes e que, por isso mesmo, arrebatam-nos instantaneamente, confortavelmente. Tais brisas, no entanto, têm a efemeridade típica dos prazeres fugazes.
               Com Roberta, entretanto, ele sabia ser diferente. Ela não era uma brisa; era um tufão! Roberta remetera a preocupante planilha para a obscuridade do esquecimento; transformara o engarrafamento num evento agradável... não, num evento DESEJÁVEL! Ela tinha a capacidade de encher de si qualquer ambiente; e um ambiente repleto de Roberta era, sempre e sempre, um ambiente aprazível...
            Convicto de que não poderia perder mais tempo, Marcelo resolveu investir com a mais eficaz das estratégias, quando se trata das relações humanas: a verdade!

                - Roberta, disse ele, desculpe-me esse comportamento que você julga estranho. Mas, veja; você chegou e invadiu meu carro atrás de carga para sua bateria... assim que a vi, perdi o controle sobre minhas palavras, sobre minha vontade... eu tenho acordado lembrando de você, só que não a conhecia. Eu lembrava e tinha saudades de alguém que nem conhecia... eu sei que isto parece estranho, mas, há normalidade no amor? Não é o amor, por essência, estranho? Como definir um sentir tão sentido que nos faz esquecer-se de nós mesmos, em função do outro? Algo que nos faz gostar de alguém mais do que de nós mesmos é, indiscutivelmente estranho!
                Mas, entenda – continuava Marcelo – um dia a gente acorda, sai de casa e encontra aquela pessoa com a qual a gente sabe que passaria a eternidade junto. A “cara metade” de que nos fala a mitologia grega. A outra parte de nós, apartada à espada, pelos deuses, como castigo para as imperfeições de nossa condição humana, condenando-nos à infelicidade da busca. E por mais que procuremos essa outra metade, ela apenas pode ser encontrada assim: ao acaso, sob os auspícios da Fortuna. A Fortuna, querida Vênus, apenas a Fortuna pode ter disposto meu carro em frente ao teu ônibus e esgotado tua bateria exatamente quando da paralisia deste engarrafamento infernal.
                Olhe bem para mim – Marcelo, parece, resolvera não parar de falar – Olhe dentro dos meus olhos e me diga se não reconhece, no fundo da minha alma, seu porto seguro? Diga se não percebe o aconchego e a ternura do meu amor? Não se sente tranqüila? Não se sente atraída pela chama que me consome e que se faz perceptível na minha angustia; que você batizou de estranheza? E não concorda que tudo isso acontecer assim, ocasionalmente, involuntariamente, acidentalmente é, também, um sinal dos deuses? Uma dica olímpica de que devemos dar uma chance ao acaso?
                Agora, Roberta – Marcelo parecia que iria, enfim, encerrar seu monólogo –, agora você entende minha estranheza? Reflita um pouco e me responda: você quer ou não dar uma chance à Fortuna? Quer ou não seguir comigo rumo à felicidade?


Capítulo VI
Não se pode prender um raio de sol

            O discurso de Marcelo apresentava, efetivamente, nexo causal; tanto que se se tratasse de um tribunal do júri haveria grandes possibilidades dele ser inocentado da acusação de comportar-se de forma estranha.
            De outro modo, seus apelos à razão como estrutura justificativa para a confusão na demonstração de seus sentimentos encontrava resistência na sua própria exposição. Marcelo deveria ter aprendido com Pascal que “o coração tem razões que a própria razão desconhece” e, assim sendo, não é factível à “razão racional” explicar as razões da emoção. Aliás, era isto mesmo que sustentava sua argumentação, no que concerne à explicação da estranheza de suas ações fundamentarem-se na própria essência estranha do amor.
            De fato, era então como se Marcelo estivesse dizendo: não é racional que eu seja racional; quando talvez fosse mais adequado dizer: seria estranho se eu não estivesse estranho.
            De um jeito ou de outro o discurso de Marcelo até poderia ter obtido o êxito por ele esperado, não tivesse Roberta escorregado, mais uma vez, para fora do carro, antes mesmo de Marcelo iniciar seu falatório.
            Marcelo não sabia, como nós, que o uso do pronome da segunda pessoa do singular em articulação com o verbo na terceira pessoa, por parte de Roberta, significava para ela, de forma especial, formalidade... ou melhor, “constrangedora formalidade”.
            ...“Você é estranho”, como se lembram, comentou Roberta demonstrando constrangimento... e nem bem finalizou este comentário, já escorregava seu corpo delgado e sinuoso para fora do carro...
            Marcelo viu perfeitamente quando Roberta se foi, mas, mesmo assim, decidiu proferir seu discurso. Pela primeira vez na sua vida relutava em resignar-se, simplesmente. Professaria o seu amor, mesmo que em monólogo. Sua natureza resignada lhe informava que seriam inócuos seus esforços: não se pode prender um raio de sol.
            Roberta serpenteava entre os automóveis. Sem poder ouvir as justificativas de Marcelo, ela ora escorregava, ora saltitava, ora se balançava; brincando com os obstáculos como fizera, há pouco, no playground da escola.
            Marcelo, uma vez que finalizara seus argumentos, resgatou da obscuridade do esquecimento a planilha não enviada – os carros permaneciam imóveis. Finalmente conseguiu falar com Brasília. A vida ia, paulatinamente, retomando o luscofusco característico de sua condição crepuscular. Olhando adiante, ainda lhe era possível enxergar Roberta em seus sensuais malabarismos juvenis, o que lhe fazia repetir, quase que em forma de oração: não é possível prender um raio de sol... Sua natureza resignada impunha-se mais uma vez.